terça-feira, 23 de julho de 2019

Palavrórios de Syngman Rhee


Estive nos últimos dias atrás dos livros escritos pelo ex-ditador da Coreia do Sul, Syngman Rhee, uma das figuras mais execráveis não somente da história da Coreia como também da história da humanidade, facilmente comparável a Hitler.

Todavia, apesar da figura abominável que foi este tirano sanguinário, vale a pena ler suas obras para compreender melhor seu caráter, seus pensamentos e ideias que, postos em prática (não todos é verdade, mas boa parte) resultaram nos anos de repressão aos opositores e martírio às amplas massas do povo sul-coreano que levou uma vida miserável com a economia nacional praticamente destruída.

Vale atentar-se na hora da leitura também aos fatos distorcidos - e os discursos feitos com base nestes - que Rhee apresenta, que são vistos em suas obras.

Atendo-se ao seu livro "O espírito de independência (독립정신): Um manual para a modernização e redemocratização da Coreia" (1910) traduzido (para o inglês), editado e publicado pelo sul-coreano Kim Han Kyo em 1 de outubro de 2000, podemos observar com clareza as posições de Rhee sobre assuntos relevantes para a época e também para o futuro da Coreia.

Quando escreveu o livro, em Honolulu no Havaí, EUA, Syngman encontrava-se na faixa dos 30 anos e levava uma vida confortável como descendente de família privilegiada em sua terra-natal e a Coreia encontrava-se no início do domínio colonial do imperialismo japonês.

Sabe-se que Rhee antes de mudar-se para os EUA esteve envolvido em manifestações e complôs dirigido por membros da burguesia para derrubar o rei de Joson e estabelecer uma República burguesa subserviente aos interesses externos, sobretudo dos EUA e até mesmo do Japão.

Chegou a ser preso por estar envolvido em complô para derrubar o rei Kojong mas foi solto em 1904, quando mudou-se para os EUA e passou a envolver-se com figuras importantes como o presidente Theodore Roosevelt e o Secretário de Estado, John Hay, com quem manteve conversações sobre possível ajuda dos EUA na "independência da Coreia".

Em agosto de 1910 regressou à sua terra-natal, agora totalmente ocupada pelo Japão. Tendo falhado em sua tentativa de lograr a "independência", Rhee acabou envolvendo-se em novo complô e chegou a ser detido por alguns dias e retornou aos EUA pouco depois. Em terras estrangeiras, participou em prol de seus interesses de "governos provisórios" para a resolução da independência da Coreia por meio de ajuda externa e envolveu-se em escândalos e conflitos que fizeram queimar sua imagem frente às principais figuras nacionalistas.

Foi o escolhido dos EUA para governar a "República da Coreia" sob regime ditatorial e total submissão ao governo estadunidense, em todos os aspectos. O resto da história inclui eleições fraudulentas, repressão e guerra...o que creio que nossos leitores saibam bem.

Vamos então a algumas passagens da referida obra de Syngman Rhee seguida de alguns comentários.


(1)

"Embora alguém possa não ter cumprido seus deveres para com o país e, portanto, ser culpado, deve-se manter o controle sobre a pessoa e o lar. Como a imposição imediata de quaisquer sanções por culpa podem ser difíceis, pode-se dizer que essa pessoa foi sábia ao administrar seus interesses particulares, afinal. Por outro lado, um indivíduo supostamente corajoso pode não administrar-se bem ou sua cada. Olhe para aqueles que costumavam ter poder. Houve uma época que gozavam de dignidade e honra que pareciam preencher a terra e prometia durar dezenas de milhares de anos; a sociedade estava deslumbrada, invejosa e respeitosa. Mas eles perderam toda a influência da noite para o dia.

Onde está sua glória? Eles confiaram completamente na legação russa, desafiaram a vontade da sociedade e não tiveram medo algum. Eles emitiram dinheiro inútil e levaram o povo à insolvência , enquanto as empresas comerciais estrangeiras sofreram perdas. Embora prevenidos, eles se recusaram a ouvir. Em conluio com outros colegas funcionários, eles fizeram todo tipo de lucro ilícito ao cunhar e circular secretamente moedas privadas. Eles enganaram os camponeses, tiraram-lhes a terra e aplicaram punições cruéis e bárbaras. Tentaram todos os meios para ressuscitar a lei de culpa por associação. Culpados ou não, os prisioneiros foram encarcerados sem julgamento por quatro ou cinco anos. Os ferros marcaram suas peles e todos os tipos de instrumentos de tortura foram utilizados."


Nesta passagem ele fala sobre a punição imposta aos que ousavam enfrentar a o governo feudal, dando explicações redundantes baseadas em preceitos morais caducos e no individualismo, como um meio de explicar sua participação nos complôs contra a dinastia de Joson. Também fala sobre a corrupção dos governantes coreanos e suas ações que os fizeram perder a influência e por fim cair nas mãos do Japão, explicação esta que de forma geral não foge não foge da realidade, embora suas justificativas tenham sido questionáveis partindo de alguns pontos de vista.


(2)

"A vida nos países ocidentais é tão agradável que quando seus cidadãos vão ao exterior, seus governos enviam cônsul e despacham navios de guerra se preciso for para proteger a vida e propriedades de seus nacionais, mesmo quando são apenas uma ou duas pessoas envolvidas. Esses estrangeiros, portanto, desfrutam do melhor tratamento e do máximo benefício onde quer que vão. Ninguém deveria invejar isso? Essas pessoas desfrutam de tais bênçãos não porque o Céu concedeu-lhes favores especiais ou preordenou tais condições exclusivamente para elas. Há quarenta ou cinquenta anos atrás ou há mais de cem anos, em alguns casos, esses países estavam em piores condições do que estávamos. Entretanto, quando as portas da educação se abriram e a civilização se desenvolveu, esses países descartaram as feições sombrias de outros tempos e, de acordo com as novas leis iluminadas, o comportamento e os pensamentos das pessoas passaram por mudanças."

Neste trecho temos uma explícita revelação de seu lacaismo e certa dose de preconceito contra seus próprios compatriotas. Ademais, demonstra cinismo absurdo ao dizer que tais países ocidentais garantiam plenamente tais direitos e viam como obrigação respeitá-los. É interessante, de qualquer forma, sua análise acerca do desenvolvimento dos ditos países e da estagnação da Coreia devido à não abertura para a educação e, de certa forma, ao intercâmbio externo, durante os anos de reino eremita, embora seja demasiado desrespeitoso supor "abertura a civilização" que indicaria uma suposta superioridade dos ocidentais sobre os orientais que, seriam então "não civilizados".

(3)

"Suponha que as pessoas comuns desejem cumprir suas obrigações e não estejam cientes dos danos que devem sofrer se falharam. Mas o que eles poderiam fazer, podem alguns de nossos leitores se perguntar, se os próprios superiores não cumprem suas responsabilidades e também impedem os cidadãos de cumprir seus deveres cívicos? Esta afirmação pode parecer um exagero. Vamos primeiro examinar o que é uma nação. Quando muitas pessoas se reúnem e vivem em uma sociedade organizada, somos todos uma nação. Pode ser comparado a uma associação onde muitas pessoas se reúnem e discutem questões; podem se encontrar em uma casa e falar livremente, rir ou conversar em grupos de 2 ou 3. Pode haver mais do que discussões; uma luta livre para todos pode irromper e uma situação perigosa pode se desenvolver envolvendo mortes. Há uma clara necessidade de regras e regulamentos específicos para medidas justas e corretas a serem cumpridas e resolver pacificamente as disputas. Para esse propósito, uma pessoa adequada deve ser selecionada e encarregada para manter as regras e a ordem. Para uma operação bem-sucedida, deve haver alguns gastos, e aqueles que trabalham para esta organização devem ter meios de serem recolhidos, portanto, da membresia e entregues a esses obreiros. Os trabalhadores tem responsabilidades para com a organização como um todo: com muitas pessoas."

Esta parte, para quem conhece bem a história da Coreia do Sul sob seu regime ditatorial, demonstra a visão que o futuro ditador aplicaria no que diz respeito à ameaças - "...dos danos que devem sofrer se falharem", à posição de dominância ao comparar a nação - composta por várias pessoas como ele mesmo diz - com uma associação que é gerida por "2 ou 3" pessoas. Propõe uma "coesão" para manter a ordem, dizendo que os trabalhadores tem responsabilidades com essa "organização" mas em momento algum, ironicamente, fala sobre a independência desses trabalhadores, considerando-os como simples servis que são úteis se cumprem as regras e incômodos e inúteis se não as cumprem.

(4)

"Ultimamente o povo vem se culpando por não ter feito bem seu trabalho. Por que então falharam? É porque eles não entendem que a nação é deles. Eles pensam que ajudar a nação é ajudar os "outros" e não percebem que ajudando os "outros" estariam ajudando a si mesmo. Eles dependem dos outros para fazer o trabalho até ficarem sem esperança. Se eles entendessem que a nação é verdadeiramente deles, não apagariam o fogo em sua própria casa somente porque os outros estão indiferentes? Quanto ao que as outras pessoas podem ou não fazer, devo correr para salvar meus pertences."

É verdade que surpreende esta figura dizer que o país pertence verdadeiramente à população, mas a sequência desse trecho demonstra bem seu falso "patriotismo" em sua tentativa de mobilizar o povo pela luta justa derramando seu suor e sangue e ficar indiferentes à posição de dominância daqueles que nada fazem pela pátria.

(5)

"O que dissemos acima tem sido mostrado naqueles que ignoram suas obrigações como súditos e apenas seguiram seus interesses egoístas. Mesmo aqueles que tem algum grau de preocupação com a população e estão dispostos a seguir o caminho de lealdade para com a nação não estão mais dispostos que os estrangeiros a arriscar suas vidas por causa da nação, porque eles não sabem o que é a verdadeira lealdade. Eles podem ter a mesma intenção e dedicar a mesma quantidade de energia mas acabam derrotando o verdadeiro propósito da lealdade. É preciso primeiro entender a distinção entre lealdade e traição antes de realizar um ato concreto de lealdade, a fim de alcançar um resultado duradouro. Hoje em dia, nosso povo considera lealdade não mais do que obedecer às ordens do imperador e seguir seus desejos. Mesmo com a nação em grave perigo e no estado de desordem, quase ninguém ousa protestar contra o imperador; em vez disso , eles apenas estudam e obedecem cegamente. Uma vez fora da presença imperial, esses dizem: "Não faz sentido. Mas devemos prestar atenção ao comando imperial. Como podemos objetar?" Se as coisas não vão bem ou se atingem um impasse frustrante em qualquer linha de trabalho, os funcionários transferem a culpa para o comando imperial e não aceitam a responsabilidade para si mesmos. Se uma pessoa leal e honesta ousar protestar e objetar, essa pessoa seria chamada de traidor e alvo de todo tipo de trama."

Para encerrar, vemos neste trecho uma crítica ferrenha de Rhee ao governo feudal e sua alienação sobre a população - o que é um ponto verídico, em partes - mas, ao mesmo tempo, faz questão de destacar que a população tem boa parcela de culpa na situação trágica do país mas se apoia na "culpa" do governo. Com críticas aos dois lados, mostra também uma hipocrisia sem tamanho ao falar de alienação e do poder que o governo exerce sobre a população, tendo em vista que futuramente Rhee comandaria extermínios em massa de pessoas inocentes por não serem "leais" e iria tentar de todas as maneiras alienar o povo em suas noções de lacaio e vende-pátria, extremamente elogioso às grandes potências e crítico aos cidadãos comuns da Coreia, seus compatriotas.

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