Há mais de um século, a Coreia era um único Estado independente e soberano, de norte a sul.
Porém, desde que os imperialistas colocaram suas garras de agressão na Coreia, o povo coreano nunca mais pôde viver de forma independente em um Estado unificado e talvez nunca mais consiga, ao menos por via pacífica.
Na 9ª Reunião Plenária do VIII Período do Comitê Central do Partido do Trabalho da Coreia, realizada de 26 a 30 de dezembro de 2023, e sobretudo na 10ª reunião da XIV legislatura da Assembleia Popular Suprema da República Popular Democrática da Coreia, realizada em 15 de janeiro de 2024, foi apresentada uma mudança completa na linha do Partido do Trabalho da Coreia e do Governo da República Popular Democrática da Coreia sobre a reunificação da Coreia, que foi concebida e desenvolvida por Kim Il Sung, desenvolvida por Kim Jong Il e continuada por Kim Jong Un ao longo de várias décadas.
Conforme elucida o Secretário-Geral do Partido do Trabalho da Coreia, Kim Jong Un, em seu discurso de orientação política ante a Assembleia Popular Suprema, a RPDC não tem mais a intenção de promover os contatos e diálogos intercoreanos que visam promover a reconciliação e reunificação.
Essa conclusão, segundo explica o líder norte-coreano, foi tomada após uma ampla reflexão das lições históricas e da realidade atual, onde a conclusão obtida foi que é impossível alcançar a reunificação pacífica da Coreia tendo em vista que o Sul nunca extinguiu mecanismos hostis ao regime social e político do Norte, como a definição deste como "inimigo principal" e a anotação da "reunificação por absorção" em documentos oficiais, ademais do não cumprimento de acordos intercoreanos e do conluio militar de caráter agressivo com forças estrangeiras diretamente vinculadas com a separação da Península Coreana em dois Estados antagônicos e beligerantes.
Em vista disso, o Partido do Trabalho da Coreia e o Governo da República Popular Democrática da Coreia decidiram pela extinção permanente do trabalho pela reunificação e tomaram medidas para dissolver todos os órgãos e mecanismos relacionados com o diálogo intercoreano, além de apresentar a República da Coreia (대한민국) como um Estado separado, não mais compatriotas ou parte da Coreia (조선), que representa uma ameaça direta à RPDC e pode ser considerado como inimigo principal.
Para implementar a nova linha, o Governo da RPDC está realizando uma ampla reorganização em todas as esferas que envolvem assuntos da reunificação, não só fechando organismos que serviam para promover a reconciliação, cooperação e reunificação entre as partes coreanas, mas também encerrando sites cujo conteúdo principal era a reunificação ou tinham como público-alvo os sul-coreanos, como é o caso de Uriminzokkiri (우리 민족끼리; "entre nossa nação") e "Hoje da Coreia" (조선의 오늘).
Além disso, foi ressaltado pelo líder norte-coreano a necessidade de mudar alguns artigos da Constituição relacionados com a reunificação e, inclusive, assinalar a República da Coreia (대한민국), não mais Coreia do Sul (남조선), como Estado hostil e inimigo da RPDC.
O Arco da Reunificação, oficialmente "Monumento às Três Cartas para a Reunificação da Pátria", um importante símbolo do legado pró-reunificação mantido ao longo de décadas pela RPDC, foi apresentado como alvo de desmantelamento pelo líder norte-coreano no discurso de orientação política e há boatos de que já foi derrubado, porém, não há confirmação oficial da parte norte-coreana.
Toda essa mudança radical na linha do Partido e Governo norte-coreanos, que provavelmente foi debatida nos bastidores durante um período considerável de tempo, levanta uma série de questionamentos sobre como será daqui pra frente e questões históricas relacionadas com o processo de divisão da Península Coreana em dois Estados.
Kim Jong Un está traindo o legado de Kim Il Sung e Kim Jong Il?
Esse é um questionamento polêmico que, pessoalmente, vi ser abordado em alguns espaços de debate sobre assuntos da RPDC, inclusive em grupos pró-reunificação.
De fato, Kim Jong Un está quebrando uma linha mantida pelos líderes antecessores. Contudo, não custa pensar que, talvez, eles mesmos, analisando as lições da história e as perspectivas de futuro, decidiriam pelo mesmo caminho.
É preciso ter em conta o período em que cada um deles lideraram a revolução coreana.
Kim Il Sung, que foi Primeiro-Ministro e Presidente da República Popular Democrática da Coreia, vivenciou a separação da Coreia já no início de sua direção sobre a revolução e fez esforços para que, de forma pacífica, o povo coreano pudesse voltar a viver sob um único Estado de forma independente.
Contudo, com a ambição belicosa dos Estados Unidos de dominar toda a Coreia e suprir sua crise econômica com ganhos de guerra, a situação levou à guerra fratricida de três anos na Península Coreana que, embora tenha causado uma derrota humilhante aos imperialistas estadunidenses, manteve a Coreia dividida.
Apesar disso, Kim Il Sung manteve o desejo de reunificação até seus últimos dias e teve encontros significativos com figuras sul-coreanas visando promover a reconciliação entre as partes, ademais de suas propostas para a reunificação que visavam manter dois regimes sociais em um mesmo Estado.
Seguindo o legado do fundador da RPDC, Kim Jong Il conseguiu grandes êxitos na aproximação com a Coreia do Sul ao realizar encontros históricos com os presidentes sul-coreanos Kim Dae Jung e Ro Mun Hyon, ocasiões nas quais foram firmados documentos sobre a reconciliação, cooperação e reunificação.
Assumindo a direção da revolução em uma conjuntura complexa onde a onda conservadora tomava conta da Coreia do Sul após "fracasso" da "Política Luz do Sol", Kim Jong Un manteve uma firme linha de enfrentamento com a Coreia do Sul devido ao recrudescimento da pressão sobre a RPDC no tocante ao desenvolvimento de armas nucleares e à realização frequente de exercícios militares conjuntos ameaçadores entre Coreia do Sul e EUA.
Entretanto, com a chegada do liberal Moon Jae In ao poder, uma nova perspectiva de diálogo sincero foi aberta, com eventos e encontros históricos ocorrendo sobretudo em 2018, quando foram firmadas as declarações de Panmunjom e Pyongyang. Existiu até mesmo a possibilidade de uma visita histórica do líder norte-coreano a Seul. Porém, com o não cumprimento cabal dos acordos pela parte sul-coreana e sua postura submissa aos EUA, como as administrações conservadoras anteriores, as relações intercoreanas foram rompidas ainda na gestão de Moon Jae In.
Com uma nova onda conservadora levando ao poder o polêmico Yoon Suk Yeol, qualquer debate oficial sobre reunificação foi descartado. Sobretudo, com as posturas que o atual mandatário sul-coreano veio a adotar em conluio com os EUA e o Japão, as relações intercoreanas não só voltaram à estaca zero, mas se tornaram as mais hostis.
Em suma, analisando os acontecimentos históricos, as constantes mudanças e as condições objetivas e subjetivas da situação, Kim Jong Un chegou à conclusão que a política mantida pelos líderes antecessores passa a não ter mais validade no momento atual e que insistir nela seria errôneo.
É possível dizer, com base nisso, que há uma leitura de cenário razoável por parte do atual líder norte-coreano, ainda que possa ser doloroso observar o término de uma longa tentativa de reunificar um país e um povo que há quase oito décadas era um só.
A ratificação por parte da RPDC da existência de dois Estados na Península Coreana é uma vitória para a política de "dividir para conquistar" dos Estados Unidos?
Em uma análise superficial, pode parecer que sim. Porém, a postura intransigente da RPDC indica que os Estados Unidos não conseguirão cumprir totalmente com seu plano.
Os Estados Unidos desde muito tempo tiveram a intenção de dominar toda a Coreia, torná-la sua colônia e utilizá-la como um trampolim para dominar a Ásia e, posteriormente, o mundo inteiro.
Entretanto, num cenário de Guerra Fria, seu plano de dominar também a parte norte da Coreia fracassou graças à intervenção da União Soviética. Contudo, eles não desistiram.
Nas negociações entre as partes relacionadas com a divisão da Coreia que, na teoria, visavam entregar todo o território ao povo coreano, os EUA mantiveram a posição de estender por mais tempo seu domínio no território sul-coreano. Mesmo quando, após a fundação da RPDC, as autoridades e os soldados soviéticos deixaram a parte norte em 1948, os EUA mantiveram suas tropas estacionadas na Coreia do Sul, mesmo com a fundação da "República da Coreia" em agosto do mesmo ano.
Os EUA fizeram todos os preparativos para a guerra, colocando um líder títere no poder na República da Coreia, treinando, organizando e armando o exército títere sul-coreano e provocando constantes infiltrações ao norte, de 1948 a 1950 (quando eclodiu a guerra), usando como bucha de canhão os soldados mercenários sul-coreanos.
Mesmo com a derrota humilhante na Guerra da Coreia, os EUA continuaram invariáveis em sua intenção de tomar pela força das armas a RPDC, promovendo treinamentos conjuntos e a implantação de equipamentos bélicos na Coreia do Sul.
Por outro lado, sempre demonstraram oposição, ainda que velada, às negociações entre as partes coreanas pela reconciliação e reunificação pacífica. Eles nunca aceitaram que o povo coreano decidisse por seu destino por si próprio.
Além disso, promoveram seguidas ditaduras pró-EUA na Coreia do Sul durante décadas, reforçaram a propaganda anti-RPDC e o anticomunismo em toda a sociedade fazendo uso de seus lacaios e fizeram esforços para incutir na mente da população sul-coreana o modo de vida estadunidense de forma a tornar mais fácil colonizá-la sem grande resistência.
Ainda sim, muitos levantes e revoltas ocorreram na Coreia do Sul contra os regimes pró-EUA e o próprio colono, sendo todas elas duramente reprimidas pela força das armas. Vale ressaltar que, durante esse lapso em que o sul está dominado pelos EUA, muitos "opositores" e "dissidentes" sul-coreanos foram presos sem prazo pra sair ou assassinados por aparatos governamentais subordinados aos interesses estadunidenses.
No cenário atual, tendo passado quase 80 anos desde a divisão, embora ainda haja resistência e pessoas que lutem pela reconciliação e paz entre as partes coreanas, predomina na Coreia do Sul uma tendência de submissão aos interesses estadunidenses entre a população, para não falar da política, onde liberais e conservadores, de forma parcial ou completa, seguem as diretivas de Washington.
Isso traz uma triste mensagem de que o povo coreano foi artificialmente separado e diferenciado e, ainda que norte-coreanos e sul-coreanos carreguem uma mesma origem e tradição histórica, nos dias atuais são completamente diferentes em diversos aspectos, fazendo-os serem vistos como dois povos separados, de dois países diferentes.
Ainda que isso possa transmitir a mensagem de que o plano dos EUA de separar a Coreia foi exitoso, isso não significa que a dominação de toda a Coreia tornou-se algo mais palpável para os ianques.
Pelo contrário. A RPDC, que já vem assumindo uma firme postura no confronto com os Estados Unidos, tende a ficar ainda mais intransigente e impulsionar ainda mais o desenvolvimento de todos os meios que assegurem o direito à existência do Estado socialista na Península Coreana.
Como uma potência nuclear, equipada com mísseis, submarinos, caças, navios e muitos outros meios de defesa e ataque, a Coreia socialista tornou-se uma fortaleza inexpugnável e, caso os EUA ou os títeres sul-coreanos tentem agredi-la, será inevitável um ataque devastador contra eles.
Além disso, já existe um plano, conforme foi explicitado pelo líder norte-coreano no referido discurso de orientação política, para no caso de guerra anexar a República da Coreia ao território da República Popular Democrática da Coreia, após ocupá-la, pacificá-la e recuperá-la completamente. Isso significa, em outras palavras, que a Coreia pode ser reunificada como uma única Coreia socialista.
O processo natural, sem eclosão de uma guerra, é a construção do socialismo na parte norte alcançar o estágio do comunismo. Porém, em caso de anexação da parte sul, o que só ocorrerá em caso de guerra, haverá um processo na parte sul para eliminar todas as impurezas da velha sociedade, moldar toda a sociedade e integrá-la ao sistema político e social já existente no norte, para que assim, na Península Coreana inteira, a construção socialista possa alcançar a almejada fase do comunismo. É isso o que nos ensina o discurso do líder norte-coreano.
Em vista de tudo isso, se essa decisão da RPDC pode ser vista como uma vitória dos EUA, é uma vitória parcial que não leva à realização do objetivo principal dos ianques em relação à Península Coreana.
Pode haver relações entre a República Popular Democrática da Coreia e a República da Coreia?
É uma pergunta que só o tempo poderá responder. Porém, é muito improvável num primeiro momento qualquer tipo de relação entre as partes.
Como dito anteriormente, a República da Coreia deve ser definida na Constituição Socialista da RPDC como Estado hostil, ganhando mesmo status que os Estados Unidos.
A República da Coreia mantém em sua Constituição a anotação da RPDC como Estado hostil e ameaçador, ao mesmo tempo que a define como parte de seu território. Além disso, mantém uma política de "reunificação por absorção" que visa o desmantelamento completo do regime político e social da RPDC e o estabelecimento da democracia liberal e da economia subjugada aos EUA na parte norte.
Na Coreia do Sul, bravatas como "fim do regime" e "operação de decapitação" da liderança norte-coreana, são proferidas com certa frequência nos círculos político e militar, o que demonstra uma clara aversão ao regime norte-coreano e sua intenção de eliminá-lo.
Por outro lado, a RPDC tem sido cada vez mais ríspida ao falar sobre a Coreia do Sul, referindo-se a ela como região títere servil aos interesses dos Estados Unidos e do Japão.
Em relação a esse assunto, é interessante observar que embora o Comitê para a Reunificação Pacífica da Pátria (fundado em maio de 1961) tenha sido dissolvido na RPDC, o Ministério da Unificação continua operando na República da Coreia. Inclusive, realiza os preparativos para designar um "dia para os desertores norte-coreanos", seguindo as ordens do atual mandatário sul-coreano que, por sua vez, é um fantoche controlado por Washington.
Em declaração nesta segunda-feira (29), o atual ministro da Unificação, disse que designar um "dia para os desertores norte-coreanos" também é "significativo para o povo norte-coreano", apontando que o "sucesso" dos que desertaram ao sul passa uma mensagem de "esperança" sobre "um futuro livre na Coreia unificada".
Tal declaração, além de ser uma demonstração clara de hostilidade ao regime norte-coreano, faz mais evidente a função que este organismo sul-coreano sempre teve: unificar a Coreia pela força, derrubando o regime político e social do norte e submetendo o povo norte-coreano à vida de escravidão colonial de versão moderna sob o controle ianque.
Tendo em conta tudo isso, é possível que as relações extremamente tensas e hostis entre RPDC e RC se mantenham assim ao longo de décadas.
Ainda que algum liberal com máscara de pacifista e conciliador assuma a presidência na Coreia do Sul, fazendo uso da dissimulação como fez Moon Jae In, é pouco provável que a RPDC aceite estabelecer diálogo e comunicação com sujeitos que, pela frente falam de paz e reunificação e, por trás, reforçam a "aliança" com os EUA.
Como a Coreia do Sul está subordinada aos Estados Unidos em todas as esferas, seria pouco razoável esperar que alguém contrário à dominação estadunidense assumisse o poder.
Mesmo figuras aclamadas como "pró-reunificação", que estiveram na presidência sul-coreana num período especial de transição entre a ditadura sanguinária apoiada e financiada pelos EUA para a democracia liberal também financiada pelos EUA, não foram capazes de dar um passo adiante nas relações intercoreanas e em expulsar os estadunidenses do território sul-coreano, incluindo as tropas militares lá estacionadas que sugam grandes somas de dinheiro do governo sul-coreano.
Sendo assim, a República Popular Democrática da Coreia deve seguir seu caminho de construção do socialismo e de desenvolvimento das forças de defesa de forma independente sem se preocupar com as relações intercoreanas, já que agora a Coreia do Sul é oficialmente República da Coreia, um Estado estrangeiro. E se esse Estado estrangeiro, que demonstra hostilidade, ousar violar a soberania e os direitos e interesses estatais da RPDC, esta, como faria em resposta a qualquer outro Estado hostil, responderá de forma esmagadora.
A realidade é dura. A situação nem sempre caminha pelo caminho esperado.
Não existe mais "relações de compatriotas" entre os Estados no norte e no sul da Península Coreana. Isso ficou no passado.
Aqueles que defendem a paz e a prosperidade precisam ver claramente a realidade que se apresenta e ter em mãos as armas necessárias para superar todos os obstáculos e combater os inimigos que os desafiam.
Lenan Menezes da Cunha, criador e administrador do "A Voz do Povo de 1945".