Entender quem foi Jo Man Sik é fundamental para compreender o processo histórico desde o período da libertação da Coreia (1945) do domínio colonial japonês, passando pela construção do Estado na Península Coreana — com cada parte sob a esfera de influência de uma grande potência no contexto da Guerra Fria — até a Guerra da Coreia (1950-1953).
Antes de tudo, é preciso ressaltar que ele é considerado um traidor na República Popular Democrática da Coreia, enquanto é exaltado como mártir na República da Coreia.
Construção como figura política relevante
Nascido em 1883, no condado de Kangso (atualmente distrito de Kangso, da cidade de Nampho), província de Pyongan Sul, na Dinastia Feudal de Joson, Jo Man Sik cresceu com considerável conforto em uma família de camponeses comerciantes. Graças à boa condição financeira de seus pais, pôde se dedicar aos estudos de caracteres chineses, clássicos chineses e matricular-se na escola Sungsil, em Pyongyang.
Em seus dias de estudos, sob a influência dos missionários estadunidenses, tornou-se cristão, pacifista e abandonou o vício em bebidas e fumo. Chegou a estudar no Japão, influenciado por uma palestra de An Thae Guk (ativista do movimento antijaponês inicial) que o levou à conclusão de que, para salvar a nação, era necessário desenvolver as competências individuais.
Distante da realidade penosa do povo coreano subjugado pelo imperialismo japonês, Jo alimentava a ilusão sobre um movimento nacional de caráter pacifista que, com apoio de potências como os Estados Unidos, poderia devolver a Coreia aos coreanos.
Mesmo assim, depois de retornar à Coreia e participar das manifestações de 1 de março de 1919, acabou sendo detido pelas autoridades japonesas, com o agravante de sua relação com To In Gwon, outro ativista antijaponês cristão que envolveu-se em manifestações antijaponesas na Coreia e na China.
Depois de deixar a prisão, poucos meses depois, passou a dedicar-se às atividades religiosas e educacionais, afastando-se temporariamente de envolvimento direto com a luta antijaponesa. Nesse período, em que passou por diversos cargos em instituições diferentes, ganhou o apelido de "Gandhi da Coreia" por sua postura pacifista.
Só retornou ao movimento antijaponês no final da década de 20, ao participar em 1927 da formação da "organização Singan" (신간회), uma organização antijaponesa que agrupava pessoas de todas as esferas da vida e de variadas orientações ideológicas, incluindo socialistas. E, em 1929, após promover um comício na estação de Seul em 1929 para falar sobre o Movimento Estudantil de Kwangju, acabou sendo preso novamente.
Sua posição como figura política e mobilizador de massas passou a ser consolidada nesse período. Após ser solto, continuou as atividades de apoio ao movimento pela independência da Coreia de forma discreta, encontrando-se com figuras independentistas e e fornecendo fundos, o que acabaria resultando em novas prisões.
Trabalhou por um curto período como presidente do "Joson Ilbo" (조선일보), um jornal influente em toda a Coreia na época. Em 1943, opôs-se abertamente ao recrutamento de estudantes coreanos para a Guerra do Pacífico. Contudo, foi publicado no jornal "Maeil Sinbo" (매일신보) um artigo direcionado aos estudantes coreanos, contendo mensagens de apaziguamento em relação ao recrutamento, falsamente atribuído a Jo Man Sik. Posteriormente, revelou-se que o artigo havia sido forjado.
Além disso, é dito que Jo recusou reiteradamente à demanda por trocar seu nome por um nome japonês, que era imposta pelo regime colonial do imperialismo japonês na Coreia.
No contexto da derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e da libertação da Coreia, Jo Man Sik, apesar de reiterados convites para mudar-se para Seul, preferiu permanecer em Pyongyang. Com isso, ele participou do processo de construção de uma nova Coreia na região norte da Península Coreana.
O "verdadeiro líder do Norte" e o "escolhido pelos soviéticos": será mesmo verdade?
Os historiadores abertamente anti-RPDC costumam espalhar uma narrativa de que Jo Man Sik seria o verdadeiro líder do povo norte-coreano, que seria mais bem avaliado e conceituado entre as massas que o General Kim Il Sung.
Faz parte dessa narrativa também uma possível preferência das autoridades soviéticas, que controlaram a parte nortenha no período inicial pós-libertação segundo o sistema de "tutela", por Jo Man Sik, e sua intenção de formar um regime burguês naquele território.
Porém, há uma grave distorção dos fatos.
Com a revelação de materiais antigos da União Soviética, algumas questões relacionadas com a questão coreana se tornaram públicas. Entre esses documentos está o "relatório de Shikin" que fala sobre as principais figuras políticas norte-coreanas, incluindo Jo Man Sik, e sobre a necessidade da realização de uma reforma democrático-burguesa na Coreia do Norte, dentre outras questões.
Realizar uma "reforma democrático-burguesa" não quer dizer necessariamente que a Coreia do Norte seguiria pelo caminho da democracia burguesa, mas um primeiro passo na construção da nova sociedade que, com o tempo, poderia seguir ao caminho do socialismo e do comunismo. Também fica claro nos documentos que, embora os soviéticos tenham influenciado diretamente na construção estatal da Coreia do Norte, não tinham a intenção de impôr o sistema soviético naquele país.
Também não há um apontamento direto sobre quem seria o líder, mas um enfoque na necessidade de formação de líderes "democráticos" (leia-se burguês ou socialista). Na visão de mundo reacionária, "democrático" não poderia ser o comunista.
Jo Man Sik em reunião com autoridades soviéticas, em agosto de 1945 |
O referido relatório chega a dizer que a posição política de Jo Man Sik em relação à URSS era "vaga".
Por outro lado, o General Kim Il Sung, cujo nome era extremamente popular em toda a Coreia por sua liderança sobre o Exército Revolucionário Popular da Coreia, havia recebido treinamento político-militar na URSS nos anos que antecederam a libertação, sendo visto como uma figura política destacada, embora jovem.
Além disso, em outro documento soviético de 1945, direcionado a figuras políticas e militares de alto escalão da URSS, está claramente dito:
"Kim Il Sung é popular entre todas as seções democráticas da população, especialmente entre os camponeses. Kim Il Sung é um candidato adequado para um futuro governo coreano. Com a criação de uma frente democrática popular, Kim Il Sung será um candidato adequado para liderá-la."
Em suma, embora alguns tentem distorcer a história com o objetivo de diminuir a posição de Kim Il Sung internamente (na Coreia) e externamente (na URSS), não há como esconder a verdade.
A URSS considerou a participação de Jo Man Sik em um novo governo na Coreia do Norte, assim como Kim Il Sung e Pak Hon Yong (que futuramente viria a trair o líder, o partido e o povo coreano), sem nunca apontar o "Gandhi da Coreia" como seu "escolhido" para liderar o país, até porque isso necessitaria do aval da população norte-coreana.
A oposição à tutela e a queda de Jo Man Sik
Apesar de sua influência política ser considerada pelas autoridades soviéticas no período inicial após libertação, suas atividades e posições políticas logo demonstraram-se problemáticas para os soviéticos e, no desenrolar dessa situação, a carreira política de Jo Man Sik começou a desmoronar.
Enquanto atuava como presidente do Comitê Político Popular da província de Pyongan Sul, Jo Man Sik promoveu controvérsia ao defender que a organização política deveria defender os capitalistas, sem descrever se falava de "capitalistas nacionais" ou capitalistas colaboracionistas. Chegou até a faltar dois dias em protesto à posição dos demais quadros em relação ao tema.
Além disso, embora não demonstrasse oposição a cooperar com os comunistas, mostrava com frequência uma certa aversão à URSS, sobretudo acerca do sistema de tulela, ao qual se opôs ferrenhamente e buscou travar uma luta de oposição.
Após a Conferência dos Ministros das Relações Exteriores de Moscou, realizada em dezembro de 1945, com a participação dos representantes de URSS, EUA e Reino Unido, ficou definido o sistema de "administração de tutela" da URSS sobre a Coreia do Norte e dos EUA sobre a Coreia do Sul, que tinha como objetivo estabelecer um regime democrático em ambas as partes e, posteriormente, reunificar a Coreia com a saída das tropas de ambos os países, passou a assumir uma postura clara de oposição à administração soviética e à Kim Il Sung, que apoiou a decisão.
Qualquer esperança das autoridades soviéticas na cooperação de Jo Man Sok acabou com os frequentes fracassos nos encontros de negociação promovidos pelos soviéticos e por Kim Il Sung. Jo Man Sik manteve-se invariável em sua posição de rejeitar a tutela soviética, cooperar com os comunistas para a formação de um novo partido e um novo governo. Segundo ele, era necessário estabelecer o quanto antes um governo central e expulsar as tropas soviéticas.
Por outro lado, nessa época ele já havia fundado o Partido Democrático da Coreia (atual Partido Social-Democrata da Coreia), onde foi eleito como presidente, e por meio dessa organização política de centro-direita, promovia uma resistência à tutela soviética e políticas pequeno-burguesas.
Em janeiro de 1946 foi preso pelas autoridades soviéticas por suas atividades antiadministração de tutela e alojado em um hotel em Pyongyang, onde fica o atual Hotel Koryo, tendo sua liberdade restrita. Além disso, foi expulso do partido que ajudou a fundar e considerado um "pseudopatriota" e "traidor" por Choe Yong Gon (que ajudou a fundar o partido), que assumiu a presidência do partido e mudou a orientação política do partido para centro-esquerda. Além disso, outras figuras próximas de Jo Man Sik desertaram para o sul e "restabeleceram" o partido direitista na Coreia dominada pelo imperialismo estadunidense.
Desse período até o início da Guerra da Coreia, Jo Man Sik manteve-se invariável em sua oposição ao regime político norte-coreano e à tutela soviética ao mesmo tempo em que recusava convites de figuras da administração estadunidense na Coreia do Sul.
Mesmo após a retirada das tropas soviéticas e a fundação da República Popular Democrática da Coreia, Jo Man Sik permaneceu contrário ao regime político socialista coreano, levando-o a permanecer preso. Nesse tempo ele já tinha sido transferido do cômodo hotel em Pyongyang para um centro de reeducação. Não há, porém, muitas informações sobre seu julgamento e pena. Sendo assim, possou a ser considerado um "preso político da Coreia do Norte" pelo regime títere da República da Coreia.
As negociações entre URSS e EUA sobre a questão da reunificação da Coreia após o período de tutela não chegaram a um acordo, resultando na permanência das tropas estadunidenses no sul, enquanto os soviéticos deixaram o norte pouco antes da fundação da RPDC.
É dito que Jo não gostava nem da URSS, nem dos EUA, motivo pelo qual se recusava a mudar-se para a Coreia do Sul, mesmo tendo sido nomeado delegado à Assembleia Nacional de Emergência da República da Coreia pouco após sua prisão em 1946. Seu objetivo era, como mostram os fatos, assumir uma posição de liderança na Coreia do Norte sem interferência soviética e promover seus ideais direitistas na sociedade.
É relatado que, após a Conferência Conjunta dos Representantes dos Partidos Políticos e Organizações Sociais da Coreia do Norte e do Sul, Kim Ku (figura sul-coreana contrária à administração de tutela) pediu à Kim Il Sung para que pudesse regressar junto a Jo Man Sik para a República da Coreia, mas o líder norte-coreano disse que não podia fazer isso, pois a questão demandaria autorização das autoridades do exército soviético.
Porém, com a eclosão da guerra, a posição de Jo sobre permanecer no norte passou a ser incerta. O governo da RPDC tinha a intenção de utilizá-lo como moeda de troca em negociações com os EUA e o regime títere sul-coreano.
Entre junho e julho de 1950, o Governo da RPDC propôs ao regime títere da República da Coreia a troca de Jo Man Sik e Jo Yong Chan (outra figura anti-RPDC) em troca de Kim Sam Ryong (figura diretiva do Partido do Trabalho da Coreia do Sul) e Ri Ju Ha (importante quadro do Partido do Trabalho da Coreia do Sul). O regime de Ri Sung Man oficialmente aceitou a proposta mas promoveu obstruções que levaram ao fracasso da negociação.
Artigo da Agência Central de Notícias de 24 de junho de 1950 |
Conforme relatatado pela Agência Central de Notícias da RPDC através de vários informes, as autoridades sul-coreanas dificultaram as negociações, levando ao fracasso da troca.
O informe da Agência Central de Notícias de 24 de junho de 1950 detalha o fracasso da tentativa de troca de "prisioneiros" devido à insistência da camarilha títere de Ri Sung Man em entregar primeiro os "prisioneiros do norte". Segundo o informe, o plano era realizar a troca através da Linha de Demarcação Militar, tendo como base a estação Ryohyon, em Kaesong.
Segundo mostram os fatos, a intenção da camarilha títere de Ri Sung Man não era realmente promover uma troca, mas enganar os norte-coreanos e levar dois "prisioneiros do norte" ao sul.
Um informe da Agência Central de Notícias de 20 de junho de 1950, publicado no diário Rodong Sinmun, já mostrava que a RPDC estava ciente da intenção da camarilha sul-coreana, embora ainda tenha insistido nos esforços para recuperar seus valiosos camaradas do Partido do Trabalho da Coreia do Sul. O artigo intitulado "A camarilha títere de Ri Sung Man tenta recusar a troca de Jo Man Sik por Kim Sam Ryong e senhor Ri Ju Ha" revela as atitudes suspeitas das autoridades sul-coreanas.
Repare que, no artigo de 20 de junho a troca incluia apenas Jo Man Sik, mas posteriormente passou a incluir também Jo Yong Chan.
Por fim, com o fracasso da troca, os camaradas Kim Sam Ryong e Ri Ju Ha foram executados na Coreia do Sul, mostrando mais uma vez a verdadeira face da camarilha traidora de Ri Sung Man.
Por outro lado, Jo Man Sik permaneceu preso e acabou morto em meio aos ataques das tropas da ONU e do exército títere sul-coreano. Todavia, as autoridades sul-coreanas alegam que ele teria sido executado por funcionários do Ministério do Interior.
Conclusão
A história de Jo Man Sik é distorcida propositalmente pelos inimigos da RPDC para tentar deslegitimar a história da construção estatal, o regime político-social e a liderança do país, tentando passar a ideia de que o "escolhido", supostamente pelos soviéticos e pelo povo norte-coreano, foi arbitrariamente tirado do cenário político por sua posição não comunista. Porém, na verdade, Jo Man Sik cometeu vários atos de traição à pátria ao defender os capitalistas que colaboraram com o imperialismo japonês e opôr-se irrazoavelmente a cooperação com outras figuras políticas sob a justificativa de que apoiavam o sistema de administração de tutela.
Na verdade, a decisão sobre a tutela foi entre soviéticos e estadunidenses. A questão foi apresentada às figuras políticas coreanas, mas elas não tinham como simplesmente recusá-la. A posição antitutela de Jo Man Sik não foi simplesmente uma oposição por discordância de alguém que, por autodenominar-se "pacifista" esperava-se diálogo, mas um pretexto para espalhar o caos nos primeiros meses da Coreia do Norte, visando incutir uma aversão à URSS entre os habitantes sob sua esfera de influência e até mesmo o anticomunismo.
Jo Man Sik era como um "Cavalo de Troia" na Coreia do Norte. Era a ferramenta perfeita para o imperialismo estadunidense e a camarilha títere de Ri Sung Man para colapsar a administração soviética e reunificar a Coreia sob um sistema de administração militar fascista.
Existem alguns que comparam Jo Man Sik a Kim Ku, mas isso não é correto. Kim Ku, embora também tenha adotado uma postura de oposição à tutela (no sul e no norte) e professado o anticomunismo no passado, não se recusou ao diálogo, tendo até mesmo partipado da Conferência Conjunta dos Representantes dos Partidos Políticos e Organizações Sociais da Coreia do Norte e do Sul, realizada em Pyongyang, e mantido conversas frutíferas com figuras do norte, incluindo Kim Il Sung.
Por outro lado, Jo Man Sik era firme em sua posição a ponto de não cooperar por um bem maior, pelo país, considerando apenas sua posição como justa. Foi isso que levou à sua queda.
Fontes
1. 빛을 남긴 선진들 ("Pioneiros que deixaram sua marca")
2. (대한민국 건국 영웅들(3)) 조만식 -그는 누구인가? ("Heróis da fundação da República da Coreia (3) - Quem foi Jo Man Sik?")
3. 고당 조만식 선생 57주기 추모행사 ("Cerimônia memorial ao 57º aniversário de falecimento de Kodang Jo Man Sik")
4. 위클리조선 - 1등 인터넷뉴스 조선닷컴 (Weekly Chosun - 1ª Internet News Chosun.com")
5. 쉬킨중장 비밀보고서 (Relatório secreto do general Shikin)
6. Soviet Report on Communists in Korea, 1945 ("Relatório Soviético sobre os Comunistas na Coreia, 1945")
7. 찰스 암스트롱, 북조선 탄생 (Charles Armstrong, o nascimento da Coreia do Norte)
8.《한국사 시민강좌. 제47집》("Aulas Cívicas de História Coreana, Volume 47")
9. "Sobre a decisão da Conferência dos Ministros das Relações Exteriores de Moscou sobre a questão coreana" .
10. 소련의 북조선 독자정권 구상과 토착 공산주의자들의 반발 ("A proposta soviética para o governo independente da Coreia do Norte e a reação dos comunistas locais.")
11. 민노당은 조만식 선생을 기억하는가 ("O Partido Democrático se lembra do senhor Jo Man Sik)
12. (2) 조선민주당 - 우리역사넷 ("Partido Democrático da Coreia - Nosso Portal de História.")
13. 曺晩植(조만식) 제거 - 金日成(김일성) 등장 증언요지 (1) ("Eliminação de Jo Man Sik - Testemunho sobre a ascensão de Kim Il Sung (1)")
14. Quem é o libertador da Coreia? .
15. From Stalin to Kim Il Sung: The Formation of North Korea, 1945-1960 ("De Stalin a Kim Il-sung: A Formação da Coreia do Norte, 1945-1960")
16. Rodong Sinmun (materiais de 1950)
Nenhum comentário:
Postar um comentário